Há poucos dias, a Nature Geoscience publicou um artigo científico que, para alguns, parecia reabrir a questão da água em Marte. Esta ideia reflecte apenas falta de informação e atenção da parte de quem relaciona tal questão com o presente artigo. Para deixar bem claro o que (não) está em jogo, aqui fica a frase com que se inicia o artigo: ‘Marte tem água abundante, sob a forma de calotes polares, gelo no solo, minerais hidratados e vapor de água’. A equipa responsável pelo artigo não põe evidentemente em questão a presença de água em Marte.

O artigo diz respeito às RSLs (em inglês, Recurrent Slope Linaea, que podemos traduzir por Linhas de Encosta Recorrentes). Estas são lineações escuras que se podem avistar nalgumas regiões de Marte, em encostas mais ou menos abruptas, no Verão local, e que, há alguns anos, foram consideradas sinal seguro de que havia água no estado líquido a correr presentemente na superfície do planeta. Esta conclusão era francamente especulativa, e é forçoso relembrar que não existem, até hoje, quaisquer evidências directas da presença de água líquida em Marte – ninguém viu ainda o mais fino fio de água a correr sobre as areias marcianas. Há uma possível excepção, de facto: as gotículas que foram avistadas numa das pernas da sonda Phoenix, em 2008; mas a sua natureza não pôde ser determinada de forma clara a partir das imagens, e elas estavam fora de alcance dos outros instrumentos da sonda.

Relembremos então os factos: há diversos tipos de formações superficiais relativamente estreitas e escuras (embora haja alguns casos em que elas são claras em comparação com a superfície que a rodeia), que surgem em diferentes áreas da superfície de Marte. Já se tornou claro que têm natureza e origem diferente. O que há de particular com as RSLs é que elas são renovadas ano após ano, no Verão, aproximadamente na mesma posição. Alguns autores associaram estas características com a presença de água congelada no solo; com o aumento da temperatura, este gelo descongelaria e escorreria sobre o solo marciano. Sabemos que a água no estado líquido não é estável nas condições ambientais que reinam presentemente em Marte; porém, a água salobra (com uma forte concentração de sais dissolvidos) resiste melhor a essas condições, e é admissível que possa mesmo percorrer alguma distância numa superfície inclinada. Assim, a água resultante da fusão do gelo no solo ficaria enriquecida em sais e conseguiria deixar as marcas correspondentes às RSLs, antes de desaparecer e deixar os sais depositados. E algumas observações pareciam indicar a presença de depósitos desse género na zona das RSLs.

Contudo, as áreas desses depósitos são de muito pequena extensão, o que torna difícil a sua identificação e análise pelos instrumentos das sondas em órbita. Não existe, assim, uma confirmação absoluta da sua presença. Além disso, existem outros mecanismos possíveis que levam em conta as características físicas das RSLe  da topografia em que ocorrem, e que não requerem a presença da água – explicam-nas com pequenas avalanches de grãos de areia marciana. Essa nova cobertura superficial tem um aspecto mais escuro que se desvanece ao longo do tempo, à medida que a poeira atmosférica assenta e tudo cobre.

A questão final é: existe uma resposta definitiva sobre a origem das RSLs? Não. Decididamente não. Estamos a falar de fenómenos que ocorrem num planeta distante, e que são observados de longe – nenhum dos rovers em Marte se aproximou de uma região onde elas ocorrem, e também, evidentemente, nenhum ser humano teve ainda a oportunidade de clarificar a questão, pelo simples gesto de observar uma destas linhas, e de pegar numa mão cheia de areia para verificar o seu comportamento e coesão…

 

Crédito da imagem: NASA/JPL-Caltech/Univ. of Arizona

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