SoapBox Science Lisbon 2022 – Artigo de Andreia Pinto
Artigo da autoria de Andreia Pinto
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Não é a espécie mais forte que prevalece, mas aquela que melhor se adapta à mudança
Charles Darwin
Não existe uma receita para a vida.
Não há um momento perfeito. A vida apenas acontece.
E na sua essência, quanto mais nos movimentamos mais a vida acontece, a um ritmo alucinante. Quanto a mim? Eu considero que nunca parei realmente de me movimentar.
Quando eu era adolescente, nunca poderia imaginar que seria esta pessoa, estando onde estou, a fazer o que estou a fazer agora.
Eu poderia escrever um blog sobre qualquer episódio, tópico ou circunstância da minha vida profissional e pessoal, podia falar de rejeição, de como foi aprender sozinha muitas técnicas totalmente desconhecidas, podia falar de bullying, de ambientes de trabalho hostis. Podia falar sobre o amargo sabor de falhar, mas também de conseguir e de ser reconhecida por isso. No entanto, hoje escolhi falar de duas pessoas que tiveram um papel fundamental naquilo que foi o meu percurso profissional.
Mas primeiro uma versão curta do meu percurso profissional. Poderia dizer que pelos padrões atuais e considerando a expectativa dos que nos rodeiam, comecei tudo na vida, ou demasiado cedo ou demasiado tarde. Entrei na universidade muito nova, sem saber bem o que me estava a acontecer, o que serviu como um token de sucesso para os meus pais que não tiveram acesso ao ensino superior. Casei-me também cedo e fui mãe igualmente cedo (antes dos 30), atualmente tenho duas filhas.
Mas também houve coisas que foram começadas ou resolvidas demasiado tarde, comecei o meu doutoramento aos 32 tentando ao mesmo tempo ser a ‘melhor mãe do mundo’. Apercebi-me também demasiado tarde que precisava de um novo emprego, um que me fizesse ficar exausta à sexta feira, e entusiasmada por recomeçar a segunda (por mais louco que isso possa parecer). Também decidi emigrar demasiado tarde, arrastando comigo uma família de quatro e um cão. E só me apercebi relativamente tarde que trabalhar num instituto de investigação não era para mim.
Assim sendo, muito brevemente, eu comecei a minha carreira em 2007 com uma bolsa de investigação, que mantive pelo máximo de tempo que me foi permitido. Em 2012 consegui uma posição permanente a fazer histologia e microscopia electrónica em ciências da vida num instituto em Lisboa. Durante este período, comecei a ganhar muita experiência em olhar para cílios das vias aéreas ao microscópio eletrónico e em 2019 fui contratada pelo Royal Brompton Hospital como investigadora num projecto de Inteligência Artificial de 2019 a 2022. Neste projecto, o objetivo seria desenvolver, em parceria com uma empresa de tecnologia, uma ferramenta que permitisse ajudar no diagnóstico da discinesia ciliar primária, de uma forma mais célere do que apenas utilizando o olho humano.
Durante o meu tempo no Brompton consegui acabar o meu doutoramento, apesar da dureza associada ao processo, escrever uma tese mantendo ao mesmo tempo um trabalho a tempo inteiro e uma família a tempo inteiro. Foi nesta altura que também percebi que a escrita científica não é mesmo o que me faz acordar de manhã. Foi aqui que comecei a considerar mudar para a indústria.
Neste momento, trabalho para a Leica Microsystems como workflow Application Specialist em preparação de amostras para microscopia eletrónica. Neste novo cargo consigo otimizar, testar e demonstrar não apenas o funcionamento de sofisticadíssimos equipamentos, mas também soluções para perguntas científicas, tendo a oportunidade de interagir com inúmeros cientistas de diversas áreas e poder saber sobre os seus cativantes projectos.
Mas porquê Microscopia Electrónica (ME), o que há de tão fascinante? Claramente que não é pela taxa de sucesso das experiências, nem pela facilidade das técnicas, certamente a parte apetecível não são os variadíssimos químicos ou a acessibilidade a equipamentos. Em Portugal, por exemplo, continua a ser incrivelmente difícil encontrar formação específica em microscopia electrónica. Além disso, para muita gente a microscopia eletrónica é considerada uma técnica em desuso, a microscopia de confusão e os PCR, dando pouco espaço ao Voldemort das técnicas, o senhor das artes negras de qualquer projecto de investigação – a microscopia electrónica de transmissão. . E no entanto, eu continuo a achar a ME verdadeiramente fascinante e desafiante. Penso que seja um pouco como um desporto de alta competição, exige muito trabalho, é doloroso e requer muito treino, mas quando bem-sucedido, a recompensa é incrivelmente gratificante.
Foi assim que começou: em 2009 eu conheci dois senhores, o duo dinâmico, Dr. Moura Nunes (o Mestre) médico, e Pedro Branco (chefe) o técnico de laboratório. Eles eram os experts no IPO-Lisboa na altura, e faziam muita microscopia eletrónica. O Chefe Branco preparava as amostras e o Mestre Nunes visualizava-as no seu microscópio (sim porque houve uma altura em que os microscópios eram quase utensílios de uso pessoal). Este microscópio, um Phillips, estava ainda equipado de uma câmara analógica, usava as chamadas chapas, isto significava que depois de uma tarde ou de um dia de visualizações, as regiões de interesse eram captadas em chapas que eram depois reveladas numa sala escura, à moda antiga. Nem pensar no: “vamos tirar 175 fotos e escolher as 3 melhores”, não, requer paciência, determinação e um camião de conhecimento combinado, e muitas, muitas horas debaixo da luz vermelha do estúdio de revelação, na antecipação de que tudo esteja impecável. Eu fui enviada para os meus tutores, pela minha primeira chefe, a Prof. Leonor Saúde, para aprender sobre TEM. Na altura ela estava interessada em ver em detalhe as barbatanas peitorais da larva de peixe zebra, nós ainda não sabíamos na altura, mas isto foi o amanhecer de um extraordinário trabalho em regeneração. Foi assim que começamos, na laboriosa tarefa de cortar dezenas de larvas de peixe, tentando encontrar uma região com apenas alguns micrómetros. Eu passei com estes dois especialistas, muitas tardes, e foi assim que acabei inspirada. Eles ensinaram-me tudo o que sabiam, sem pedir nada em troca, eles foram sempre muito pacientes e nunca derrotistas. Eu gosto de me referir a este período da minha vida como a descida à toca do coelho, tal como a Alice, e tal como ela, fiz asneira, falhei muitas vezes, sei que os frustrei, acabando também eu própria frustrada. Foi muitas vezes difícil de aceitar que as coisas simplesmente não funcionavam ou não eram claras, quase magia negra. E fui muitas vezes assombrada por coisas que se pareciam exatamente com aquilo que eu estava à procura, lookalikes celulares seguidos de um rush de antecipação positiva, apenas para mais tarde ouvir a célebre frase “isso, menina Andreia, não passa de um corpo multivesicular”.
O Mestre Nunes diria que é um infinito poço de bondade, de certa forma tão diferente dos outros médicos da sua geração. Ele sempre me fez sentir especial, sempre encorajador, e apesar de tudo, apesar da fenda profissional que sempre nos separou, o Mestre sempre me tratou de igual para igual. O chefe Pedro sempre foi muito direto, sem “falinhas mansas”, apenas factos. Na verdade, foi só uma autoestrada para o desenvolvimento de capacidades técnicas que me acompanharam para a vida. Eu sei que sendo ele tão difícil de impressionar, e sempre tão exigente, fazê-lo orgulhoso era algo que sempre levei muito a sério, e que sempre me motivou.
Este trabalho que fizemos juntos, algo entre iniciar-me no mundo da ME, treinar-me para ser independente e também procurar uma solução para uma pergunta científica, foi muito maior do que qualquer pessoa possa imaginar, o número de nanómetros percorridos daria provavelmente para pavimentar um campo de futebol, a pilha de lâminas de vidro produzidas ainda hoje me assombram e o número de grelhas visualizadas foi de certa forma, incontável. Mas acima de tudo, a hecatombe de material absolutamente inútil produzido para no fim chegar a uma imagem ou duas, mostrando aquele cílio a projectar-se da célula num ângulo quase impossível – o delírio. Sei que pode soar um exagero, mas passar por algo assim cria uma certa irmandade que apenas nós reconhecemos. Estas duas pessoas incrivelmente talentosas são ainda hoje bons amigos, uma família que adquiri. E nós ainda mantemos conversas regulares, e ainda nos arrepiamos juntos na presença dos avanços em microscopia eletrônica. Quase como olhar para algo que parecia que ia morrer, para depois a ver renascer das cinzas qual fénix em todo o seu esplendor. A memória do meu bom Mestre Nunes por vezes já lhe falha, mas uma vez por ano quando nos encontramos, ainda vejo os seus olhos a brilhar quando lhe digo o quão longe estamos a ir e o quão alto está fénix voa.
Vou terminar com uma história que o Mestre Nunes costumava contar:
A barata, uma parábola sobre conclusões
Um cientista decidiu provar que os ouvidos das baratas se localizavam nas suas patas.
Portanto, ele começou a conduzir experiências.
Ele colocou a barata numa mesa e bateu palmas alto.
A barata fugiu.
Depois o cientista arrancou uma pata à barata e bateu palmas com força novamente.
Mais uma vez a barata fugiu.
O cientista prosseguiu arrancando mais uma pata à barata, e bateu palmas uma terceira vez.
Apesar de atabalhoadamente, a barata voltou a escapar-se.
Depois o cientista arrancou a terceira pata da barata e bateu palmas pela última vez.
A barata não se moveu.
Como se pode verificar – agora a barata está surda! – concluiu o cientista.
A Lição: apenas os factos são indiscutíveis, não as conclusões.
Vale a pena pensar nisto 😊
Se estiverem interessados em seguir o dia-a-dia de uma mulher na ciência, por favor sigam a página de Instagram @cellfie_temgram e o Twitter @cellfie3 – obrigada!
Autora
Andreia Pinto começou a sua carreira como Histotecnologista e foi refinando a sua área de interesse em microscopia electrónica. Trabalhou durante mais de dez anos num instituto de investigação em Lisboa, coordenando o departamento de microscopia electrónica, aceitando todo o tipo de projectos, maioritariamente nas ciências da vida. Projectos abrangendo áreas desde a investigação fundamental até à investigação translacional. Começou a trabalhar no diagnóstico da discinesia ciliar primária (DCP), em 2014, em Lisboa tendo mais tarde continuado o seu desenvolvimento na área no Royal Brompton Hospital em Londres como Thoracic Research Associate. Durante este período esteve envolvida no desenvolvimento de um método de diagnóstico utilizando inteligência artificial para classificar imagens de microscopia electrónica de transmissão (TEM). Durante este período obteve ainda financiamento para investigar particularidades da infecção por Sars-CoV2 nas vias respiratórias utilizando MET convencional e ainda tomografia de alta resolução. Atualmente, tem uma posição de workflow application specialist em preparação de amostras para microscopia electrónica, na Leica Microsystems, e está sediada no Imaging Center da EMBL em Heidelberg.
SoapBox Science Lisbon 2022
A 15 de outubro, das 15 às 18 horas (GMT+1), a nossa Soapbox Arena estará no FICA e acolheremos 9 mulheres cientistas locais, selecionadas a de um competitivo grupo de investigadoras. Haverá três sessões de 1 hora, com três oradoras por sessão que irão partilhar o seu trabalho em tecnologia, ciência, medicina e engenharia. O público, de todas as idades e origens, terá não só a oportunidade de ouvir e aprender com cada oradora sobre o seu tema e perspetivas, mas poderá também interagir diretamente com as cientistas, num ambiente divertido e de partilha.
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